O velho “Niassa”, depois de cumprir outra longa viagem, mais uma vez carregado de “carne para canhão”, para alimentar a voracidade duma guerra de interesses pouco transparentes e mantida por toda uma série de justificações sem sentido (as moções de censura a Portugal, na O.N.U., pela sua política de nação colonialista, sucediam-se umas às outras), acostou finalmente ao cais do pequeno porto da cidade de Porto Amélia (hoje Pemba), fundeando na sua bela baía de águas muito profundas, com condições privilegiadas para aí se construir um porto de mar, capaz de admitir embarcações de quaisquer calados.
(Gozando o “cruzeiro” no Niassa)
Desembarcamos finalmente em terras de Cabo Delgado, província do norte de Moçambique, para escrevermos para a História Lusa, uma nova gesta de “heróis” (quais descendentes de Mouzinho de Albuquerque), sentindo na pele o calor abrasador daquele sol e sob os nossos pés, o contacto duma terra, totalmente estranha para a grande maioria de nós, em nada igual à nossa deixada para trás, terra com que não sentíamos qualquer afinidade, estranhos que eramos daqueles sítios, daquelas gentes, como que prenunciando e nos advertindo para quanto de árdua e dolorosa seria a nossa missão.
Reunidos no destacamento militar de Porto Amélia (Pemba), acabamos acomodados, com armas (na verdadeira aceção da palavra) e bagagens, em viaturas de transporte de mercadorias – vulgo camiões – onde melhor, ou pior acondicionados, iniciamos uma longa viagem até Nancatári, destino final da minha companhia militar, a C.A.R.T. 2717 (Companhia de Artilharia 2717, conhecida no teatro de guerra pela sigla - “Os Americanos”.
Os cerca de 300 Km foram percorridos em várias etapas, através das muito típicas estradas africanas, conhecidas na linguagem gentia pelo termo “picadas”, cobrando-nos essa primeira tarefa, quase três dias de viagem (cerca de 50 horas) extremamente cansativos, direi mesmo extenuantes, com paragens noturnas impostas pelas necessárias precauções em relação a possíveis ataques “terroristas”, e para descanso de condutores e “passageiros”.
(Aspeto usual das colunas de viaturas pesadas para transporte de pessoal
militar, material de guerra e abastecimentos da mais variada ordem)
(“O “bom estado” das picadas com a chegada das chuvas)
No fim da primeira etapa alcançamos a povoação de Montepuez, povoação já com alguma dimensão populacional e sede do mais importante aquartelamento, no Norte de Moçambique, das tropas especiais, os conhecidos Comandos.
Na primeira das noites, passada num território com um clima desconhecido e muito enganador, rapidamente nos apercebemos, que após o abrasador calor durante o dia, também nos era dado sentir o frio gélido, cortante, das suas noites, devido ao “cacimbo” – uma espécie de orvalhada de S. João, bem mais fria.
À semelhança da larga maioria dos camaradas de armas, procurei, para descansar o corpo e tentar “passar pelas brasas”, o resguardo e proteção das “caixas” das viaturas, acomodando-me no chão duro, enrolado no chamado pano de tenda – peça de equipamento distribuído a todos os militares, essencialmente para proteção da chuva.
Acontece que o frio intenso, não nos deixava sossegar e decidimos, eu e mais três camaradas, pedir ajuda no aquartelamento dos Comandos, para que, se possível, nos fosse disponibilizada uma cama, ou no mínimo, um teto em ambiente mais acolhedor. Entabuladas as “negociações”, estas resultaram na cedência dum quarto com, apenas, duas camas individuais. Problema complicado? Só para outros, que não portugueses. Tal como o pobre não deve olhar ao valor da esmola, que lhe dão, também nós, usando da arte e do engenho, apanágio dos Portugueses, solucionamos o problema, juntando as duas camas e dormindo atravessados.
Foi-nos então possível conseguir 3 a 4 horas de sono mais reparador, para retornar à “coluna”, retomarmos viagem e efetuar nova etapa até à povoação e aquartelamento de Muirite, viagem igualmente muito exigente em termos físicos e agora também, cada vez mais psíquicos, pois adquiriamos passo a passo, quilómetro a quilómetro, uma noção quase táctil do pulsar do coração da guerra.
Aqui chegados, voltamos a ter as mesmas dificuldades de alojamento e a rapaziada lá se desenrascou à boa maneira portuguesa. Eu, em particular, senti-me um privilegiado, quando o radio - telegrafista de serviço em escala noturna, amavelmente me concedeu a possibilidade de usufruir da sua cama, enquanto durasse o seu turno, permitindo-me assim mitigar, em condições excecionais, a minha fadiga. Nunca poderei esquecer este gesto desinteressado e de grande solidariedade por parte deste camarada.
Seguiu-se para mim e para os meus camaradas da companhia C.A.R.T. 2717 a etapa final, de Muirite a Nancatári, talvez a mais desgastante de todas, quer a nível físico, quer a nível psíquico, não tanto pela distância percorrida, mas pelo facto de levarmos connosco, numa proteção considerada como indispensável, um grupo de camaradas já veteranos de Muirite, o que nos alertou para a circunstância de estarmos mesmo a entrar na zona de perigo, zona suscetível de ações de guerra.
É que neste trajeto já era habitual os “turras” colocarem as suas “marmitas”, para distribuir a sua “sopa”, e que “sopa”, meus amigos.
(As temíveis anti – pessoais, que estropiavam quem as pisava)
(Um exemplar de mina anti - carro, conhecida por “viúva negra”)
A noção da entrada em zona de perigo iminente por jovens soldados do chamado contingente geral, isto é, com pouca, ou nenhuma preparação específica para enfrentar uma guerra, com características sui generis, recém- chegados ao teatro de guerra e por isso mesmo, cognominados por “Maçaricos”, elevou os níveis de stress para valores não habituais, com todas as suas consequências físicas e psíquicas. Felizmente a etapa decorreu sem incidentes de maior e atingimos a nossa meta final, a pequeníssima povoação indígena de nome Nancatári, aconchegada à proteção do aquartelamento militar, satisfazendo por fim a nossa curiosidade sobre as “características” do nosso novo alojamento, onde desenvolveríamos a missão, que nos impuseram realizar durante os próximos 18 meses.
(Aspeto parcial do aldeamento civil de Nancatári)
(Vista aérea de Nancatári City)
(Em primeiro plano, o “aeroporto” com pista de terra)
(Considerada como uma das várias provas da esfericidade do planeta Terra)
A Nancatári chegava a minha companhia para render outra companhia, que terminada a sua missão na chamada zona de 100% (zona de teatro de guerra), se deslocaria para sul, indo cumprir missões de muito menor risco, como vigilância a linhas férreas (mais adiante irei especificar, porque me refiro a linhas férreas).
E mais uma vez, falharam os serviços de apoio estratégico de retaguarda. Os militares ainda “residentes” dispunham logicamente das suas camas e camaratas. Nós, os recém-chegados, mais uma vez tivemos que nos desenrascar – a mim saiu-me, em sorte, o chão de cimento da secretaria da companhia, onde extenuado, tendo por almofada o cinturão e o cantil, mais o pano de tenda como cobertor, descansei o “esqueleto”, num sono interrompido por sobressaltos, ao sentir-me volta e meia, quase tratado como “petisco” para toda uma multidão de baratas, cujas dimensões, minhas gentes, se diriam quase de palmo, tal era o seu inacreditável tamanho. Só mesmo vivido e visto dará para acreditar.
Texto de João Valdoleiros
Texto de João Valdoleiros
Essa picada de Nancatári, fi-la eu em Outubro de 72... de Pemba a Moeda, Cabo Delgado, onde cumpri grande parte do meu SMO.
ResponderEliminarA sua descrição é real e verdadeira mas com muito exagero no que diz respeito ao tamanho das baratas!
Depois fui destacado para o Songo para dar protecção aos construtores das enormes torres para transporte da energia eléctrica de Cabora Bassa para a África do Sul, Rodésia, etc.
Fiquei às ordens do Quartel General situado em Estima.
Fiz a picada de Nairoto a Mueda, passando por Muirite (um destacamento da minha companhia) e Nancatari em Dezembro de 1973, em escolta a uma coluna que seguia para Mocímboa do Rovuma. Era, como quase todas as picadas de Cabo Delgado, um caminho para esquecer, mas de Muirite até Mueda era feito em duas etapas, e nessa viagem o pessoal de Nancatari tinha de fazer a picagem de praticamente todo o caminho (40 + 25 kms) e tivemos minas nas duas etapas, só no regresso é que não.
ResponderEliminarPassei os últimos cinco meses de comissão em Mueda e para lá chegar passei pelo cruzamento da viúva,Montupuez,e todas as terras mencionadas no post e não esquecer as célebres bananeiras onde tudo podia acontecer.Felizmente foi uma coluna de reabastecimento com poucos percalços com saída de Nampula e chegada a Mueda num dia de Agosto de 1972.
ResponderEliminarUm abraço para todos
Eu estive em Nancatari desde Março de 1974 até Setembro de 1974,era um grande buraco sem duvida,ataques ao aquartelamento,emboscadas nas picadas principalmente nas célebres bananeiras,e minas tambem eram ás dezenas espalhadas e enterradas por aquelas picadas de Nancatari Muirite e Nancatari Mueda,depois antes de sairmos de Nancatari tivemos que rebentar o nosso paiol da Companhia,e fui eu oresponsável pelo rebentamento do mesmo,visto ser especializado em minas e armadilhas,enfim tempos para rescordar e talvez fazer por esquecer,se isso fosse possivel,mas infelizmente não é,RESULTADO FINAL 2 MORTOS EM COMBATE E 38 FERIDOS E ALGUNS GRAVEMENTE DEVIDO A MINAS ,E ISTO SÓ DESDE MARÇO DE 1974 ATÉ AO DIA 10 DE JUNHO DIA EM QUE MORREU O NOSSO ULTIMO HOMEM O SOLDADO JOAQUIM PEIXOTO ,O OUTRO SOLDADO MORTO EM COMBATE FOI O SOLDADO AFRICANO IREMOS SITOLA,PAZ ÁS SUAS ALMAS,UM GRANDE ABRAÇO PARA TODOS OS COMBATENTES DESSA MALDITA GUERRA.
ResponderEliminar