quinta-feira, 3 de maio de 2012

Testemunho vivo de Abril

Por sermos uma terra em que tarda a sentir-se o verdadeiro espírito de Abril, na sua essência que quer dizer liberdade e, como disse alguém, o "Direito à Indignação" tão necessário nestes dias de supressão de direitos, vimos, por sugestão de um leitor e amigo, trazer o texto que o Dr. João Valdoleiros publicou no blog da JS, com a devida autorização, quer do autor quer de quem o publicou. E, já agora, com a devida vénia:



O meu 25 de Abril
Corria o ano de 1969, quando fui surpreendido pela imposição do regime ditatorial salazarista a defender os territórios coloniais, pomposamente designados por “províncias ultramarinas”, mistificando assim a ideia de que Portugal era uma nação única aquém e além-mar.
Iniciei então a minha vida militar como “voluntário”, no ex - G.A.C.A – 2, de Torres Novas, tendo aí sido incorporado no Batalhão de Artilharia 2918 e embarcado em princípios de 1970 no velho “Niassa”, a caminho da ex – colónia Moçambique, como oficial médico da Companhia de Artilharia 2717, tendo regressado só a Portugal em finais de 1972.
Em Moçambique durante o desenrolar da minha comissão de serviço militar (pomposo nome dado a uma imposição), o privilégio de conhecer e conviver com alguns dos oficiais, que viriam a encarnar as figuras dos Capitães de Abril, revelando-se já no nosso convívio diário, como militantes duma mesma cruzada, a concretização dum sonho, que desde os meus tempos de estudante universitário, já então procurara com as lutas académicas da década de 60, a libertação de Portugal e dos Portugueses dum execrável regime político, completamente limitador do usufruto dos mais elementares direitos, como os direitos à liberdade de expressão e do pensamento, à livre circulação de pessoas e bens, o direito à livre reunião de pessoas, o direito à Escolaridade e à Saúde, com carácter universal e tendencialmente gratuito, o direito ao Apoio Social, etc..
Pude em breve, com a vivência nas nossas tertúlias, concluir que me encontrava entre gente com as mesmas afinidades e as mesmas ambições políticas, recuperar a Liberdade e restaurar a Democracia em Portugal, que um golpe militar fascista há muito nos tinha espoliado.
O convívio, quase diário, com capitães, como Sousa e Castro, mais tarde designado para porta-voz do Conselho da Revolução, como Cal e Simões, todos camaradas de armas do meu batalhão e que se revelaram mais tarde como agentes fautores na preparação da revolução de Abril de 74, permitiu-me tomar muito cedo o conhecimento, que algo estava em preparação e que deveria despoletar a curto prazo.
E tal veio a acontecer. Primeiro, o chamado Golpe das Caldas (da Rainha) a 16 de Março de 1974, chefiado por um dos mais corajosos capitães, o saudoso Salgueiro Maia. Depois, a Revolução de 25 de Abril, também conhecida pela revolta dos capitães.
Mas respeitemos a cronologia dos acontecimentos da minha vida.
Avisado como estava, recém-chegado a Portugal e ao meu Marco, terminada que estava a minha comissão militar de “voluntário” por imposição dum regime político ostracizado por todo o Mundo Livre, em meados de Setembro de 1972, logo tratei de me preparar e aos meus, para a possibilidade duma revolta militar, com características bem diferentes da célebre “revolução dos cravos”.
Com o meu irmão mais novo, estudante universitário em Lisboa, avisado para estar alerta e que me passasse palavra o mais cedo possível, se tal viesse a acontecer. E assim foi.
No dia 25 de Abril de 1974 pelas 06 horas da manhã, tocava o telefone na minha residência familiar, com a mensagem de alerta, breve e simples, do meu irmão “liga o rádio na Renascença”. Logo confirmei pela canção de Zeca Afonso, Grândola Vila Morena, repetidamente transmitida pela emissora, que a Liberdade estava a caminho, para nos devolver a Democracia e a Dignidade dum Povo livre.
A Revolução de Abril estava em marcha.
Nesse dia de Abril de 74, muitos de nós Marcuenses, rejubilando de alegria, calcorreamos as ruas do centro da ainda Vila do Marco de Canaveses, não nos cansando de dar vivas à revolução, aos militares, gritando Liberdade, Liberdade, debaixo dos aplausos e dos incentivos duma população em delírio. 
Para minha surpresa, no dia imediato, um grupo de cidadãos marcuenses, há muito lutadores pela Democracia, honraram-me com o seu convite para aderir ao MDMC (movimento democrático de Marco de Canaveses), convite que aceitei de imediato por entender ser meu dever lutar pela defesa da Liberdade e da Democracia e contribuir para a sua implantação no nosso Marco.
Ultrapassando a manifesta resistência de alguns, a incredulidade de muitos outros e ainda as dúvidas, as incertezas e os medos das semanas seguintes ao eclodir da revolução, os democratas desse movimento lançaram-se no terreno, deram a cara e o nome, tratando de ajudar a passar a boa nova e elucidar as populações de tudo quanto acontecia e se modificaria no seu futuro.
Nessa tarefa, verdadeira missão, recordo uns com saudade, democratas marcuenses como Eduardo Moura, João Silva, José Pereira Coutinho, que já partiram do nosso convívio, mas sempre presentes na nossa memória e outros, felizmente ainda entre nós, como Isabel Pinto, Júlio Correia Monteiro, Jorge Baldaia, Amadeu Queirós, Delfim Pinto, João Baptista Magalhães, Carlos Ferreira e tantos outros, que só a minha já fraca memória mos faz esquecer, mas que continuam na nossa saudade.
Só para que os mais novos tomem conhecimento e para que os mais desmemoriados se recordem, limitar-me-ei a citar os nomes dos elementos do MDMC, eleitos para constituir a Comissão Administrativa, que ficou a gerir os destinos da nossa autarquia municipal até às primeiras eleições livres em Democracia. Ei-los:
- Amadeu Marramaque, como presidente da comissão, Isabel Pinto, Júlio Correia Monteiro, Ramiro Pontes e Delfim Pinto, como vogais.
Nos primeiros tempos pós-Abril por todo o país e, também no Marco de Canaveses, seguiu-se, compreensivelmente, um período de alguma agitação social fruto da profunda mudança política, também da necessidade da aprendizagem duma vivência democrática, da noção dos direitos e deveres de cada um, que a revolução nos tinha devolvido.
Cometeram-se erros?
Sim, naturalmente tais erros eram passíveis de acontecer. Nada que nos abalasse a determinação em fazer vingar o sonho pelo qual tantos e tantos portugueses tinham lutado das mais variadas formas e nos mais diversos locais. Nunca nos faltou a paixão, a dedicação à causa democrática, o sentido de justiça, o respeito pelos valores democráticos, agora que finalmente nos tinham sido devolvidos por um punhado de valorosos militares.
 
Urge, porém, nos nossos tempos, defender Abril de 74, defender e incrementar a Liberdade, fortalecer a Democracia, agora tanto como em 74, pois os seus inimigos nunca desarmaram e os sinais dos tempos só parecem anunciar-nos nuvens de muito mau presságio no horizonte do nosso futuro. Teremos, nós os democratas, que nos revemos nos valores de Abril de nos unirmos, de constituir um bloco uno e indivisível, nunca esquecendo que o Povo unido nunca será vencido.
Viva o Abril de 74

6 comentários:

  1. Quero penitenciar-me do lapso cometido ao atribuir ao capitão Salgueiro Maia a autoria e chefia do Golpe ou também chamada Revolta das Caldas.
    Efectivamente foi o capitão Armando Marques Ramos,capitão dos comandos,quem chefiou a coluna militar dos revoltosos,que sairam das Caldas em direcção a Lisboa.

    As minhas desculpas aos leitores do blogue MCN
    João Valdoleiros

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  2. E eu também fui para Moçambique, estive na Beira, Nampula e Mueda. E ai conheci muitos desses militares que fizeram mais tarde a Revolução de Abril. Também conheci alguns, que tentaram tudo para que esse dia nunca chegasse.

    Acompanhei algumas das conversas entre o meu pai e o meu tio mais novo. Não percebia, mas sentia que eram assuntos importantes para todos nós. Também assisti a outras conversas, onde se defendia o antigo regime, os seus méritos e que só alguns é que tinha direito de decidir o futuro de todos os portugueses.

    Também acordei muito cedo no dia 25 de Abril de 1974, surprendido sobretudo por o meu pai estar acordado tão cedo.

    (Quem o conhece bem sabe que tinha de ser algo muito importante para o tirar da cama aquelas horas da madrugada. Desculpe pai, mas as pessoas também tem de conhecer essa sua faceta.)

    Foi um dia diferente, de muita esperança e de muita alegria, sobretudo quando pela RTP todos assistimos ao render do regime e de Marcelo Caetano.

    Foi um dia para andarmos no Marco felizes e sobretudo livres do peso de uma ditadura, que estava por todos o lado presente. E no Marco estava muito presente.

    Foram dias com muita esperança num Portugal moderno, mais aberto ao mundo e sobretudo mais livre. Um Portugal onde pudessemos dizer o que pensavamos, que não existissem quem nos julgasse e impedisse de dar a nossa opinião.

    E durante uns tempos conseguimos ter essa liberdade, sem ter medo ser sermos apontados ou ameaçados cobardemente.

    Foram dias de experiência desses novos direitos conquistados pelos Militares de Abril, umas vezes com muita ingenuidade, outras com muito civismo.

    Foram dias de perceber finalmente o que era Democracia, o que era o Poder do Voto, o que era o Poder de Lutarmos pelos nossos Ideais.

    Aos poucos, uns mais que os outros, foram tendo como garantidos esses direitos. Aos poucos outros fizeram tudo para limitar, ou mesmo retirar, esses direitos conquistados em 74.

    Aos poucos, alguns foram tentando desvalorizar aquele dia em que os nossos militares, comandados pelos Capitães de Abril, vieram para a rua para garantir esses direitos a todos os portugueses.

    Hoje digo, a alto e bom som:

    Obrigado Capitães de Abril, pois a vocês, e só a vocês, é que temos de agradecer a conquista da Democracia.

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  3. Agradeço ao Dr. João Valdoleiros este testemunho histórico, na primeira pessoa. Significa que a memória não se pode perder, tal como a identidade, que dela depende. Mas , sobretudo, que há Homens que nunca esqueceram qual é o lado justo da Vida. Obrigado.

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  4. Ao meu amigo Dr. Abel Ribeiro

    Sensibilizado pelas suas amáveis palavras,não poderia ficar indiferente perante a sua bondade de carácter e manifestação de camaradagem com que me honra.
    O meu muito sincero obrigado.

    João Valdoleiros

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  5. Ao meu filho Jorge

    Pensei deixar passar em claro a pequenina provocação,que me fazes no teu comentário,quanto aos meus hábitos de sono.
    Resolvi,entretanto,deixar aqui uma breve nota sobre algo,que te terá passado em falso.
    É que os hábitos de sono dos Valdoleiros,tanto quanto os conheço,aproximam-se muito dos horários dos noctívagos.Não que gastem essas horas em actividades pouco recomendáveis,não.
    Trata-se apenas e creio que sim,como médico,dum tipo de relógio biológico,que tal determina.

    Um beijo do Pai

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