sábado, 13 de fevereiro de 2010

O preto da Regaleira

Portugal foi um Império do Minho a Timor, passando por Goa, Damão e Diu "usurpadas pela força" à Nação Lusitana. Era assim que aprendíamos nos livros da Escola Primária, sempre sob o olhar atento e paternal de Américo de Deus Rodrigues Thomaz e António de Oliveira Salazar. No Marco e em outras vilas do interior de Portugal Continental os dias corriam devagar e não fora aqueles em que tinhamos de engolir um colher de óleo de figado de bacalhau, toda a rotina era a favor de uma infância saudável e segura, onde todos se conheciam e sentiam em família.
O Marco vivia muito sobre si mesmo e ir ao Porto demorava cerca de 2h, numa estrada serpenteada em que grande parte do seu percurso era ainda quase toda em paralelo. Mais tarde, quando começou a ser asfaltada baixou-se o tempo para 1h/1h30m. Para ir à capital do distrito passava-se pela "cidade da risca ao meio" e por um conjunto de terras mais pequenas que viviam precisamente da estrada, Casais Novos com a loja dos Bolinhos de Amor, Baltar com a padaria das regueifas paragem obrigatória das carreiras e Valongo com os biscoitos da Paupério.
Todas as quintas-feira era este o percurso que fazíamos na tarde de folga do meu pai: ir ao Porto. Era um ritual que em pequeno adorava fazer, pois sabia que as guloseimas me esperavam e que um Corgy Toys ou Matchbox viria comigo de volta para fazer as delicias da malta da minha idade, um Porsche Carrera ou um Ford das 24h de Le Mans entre tantos outros que tiveram na sua maior parte o mesmo destino, a pancada do martelo. No quarteirão entre a Praça D. João I e a Sampaio Bruno ficava um mundo que preenchia uma tarde bem passada todas as semanas: o café Rialto, distinto com os seus dois andares e uma escada imperial, a "tasca" da Maria Rita que cozinhava um excelente bacalhau frito da cidade, o Rei dos Queijos, onde nos abasteciamos de figos e nozes para o regresso, o café Brasileira com a mesa do grupo de amigos do contra e... a Regaleira famosa na época pelo seu bife.
Esta casa tinha um porteiro todo vestido de verde, com botões dourados e boné a condizer. Simpático até dizer basta, enorme de coração e de físico, mãos grandes, sempre a sorrir, mas do qual eu tinha um medo terrível. Era o preto da Regaleira, um homem simpático, simples e amigo das crianças, que do cimo do seu tamanho também era uma criança feliz por estar ali a fazer o seu trabalho. E eu, um miúdo que no fundo queria brincar também com ele, sentir aquela pele tocar a minha e poder contar todas estas aventuras nos dias seguintes.
Depois voltavamos para o dia-a-dia numa terra distante a 60km, 1h30m de viagem e com um retemperador sono onde cabiam sonhos em África a brincar com um miúdo como nós que também queria ser feliz, o preto da Regaleira.

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